domingo, 7 de novembro de 2010

Comentários acerca de "Deus: uma biografia" de Super Interessante


Ok caro leitor, o que tem de novo nessa matéria da Super Interessante?! Só o fato dela ser veiculada em novembro. Geralmente as revistas e canais de TV onde se veiculam as patacoadas cientificistas concentram sua munição no mês de dezembro. Tirando esse ataque inesperado (ponto para eles porque em questões estratégicas ataques surpresa quase sempre são bem sucedidos) o resto é apenas mais do mesmo. Sim, mais do mesmo. Em “Deus: uma Biografia”[1] encontramos o mesmo comportamento tendencioso de sempre, a mesma rasura de argumentação, sempre muito bem disfarçados por figuras bonitas de se ver e passagens poeticamente pobres. No mais recente ataque da representação cientificista à existência de Deus o que não falta são generalizações infundadas, utilização mal intencionada do método das ciências humanas e é claro, o que seria de uma reportagem como essa sem as nossas queridas falácias?! Enfim o pacote é completo e no capricho. No entanto, para se defender de técnicas de batalha antigas não é necessário muitas inovações no sistema defensivo. O cientificismo não esta contribuindo muito com o desenvolvimento da apologética cristã pois, se eles continuarem batendo sempre nos mesmo argumentos nós nem precisaremos criar refutações novas (risos).

Vamos então a uma analise de todo esse discurso. Vejamos o trecho que apresenta a ideia guia da matéria "[...] Essa concepção [tradicional sobre Javé], que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos, não nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a Bíblia ser escrita. O próprio Javé foi uma divindade entre muitas. Fez parte de um panteão do qual nem era o chefe. O fato de ele ter se tornado o Deus supremo é marcante [sic]É essa a história que vamos contar aqui. A história de Javé, a figura que começou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a forma como cada um de nós entende a ideia de Deus[...]". [2] Parece Intelectual não?! Coisa descolada, de gente que não se prende a concepções do passado! – pode ate parecer, mas também parece coisa de gente que não entende muita coisa sobre a ordem dos fatos ocorridos e que entende muito menos coisa ainda sobre teologia.
No entanto as “dificuldades de compreensão” das quais a matéria se utiliza para criar confusão na cabeças das pessoas não serão mais dificuldades se passarmos a entender uma chave de compreensão que nós chamamos de “Revelação Progressiva”. O fato é que hoje essa é uma corrente muito forte e séria na teologia. Essa forma interpretativa compreende que a revelação de Deus aos homens foi e é progressiva. Crer e entender assim não exige nenhum compromisso com a teologia liberal (compromisso esse, que quem acompanha meu blog sabe que eu estou longe de ter). O que ocorre é que descobrir que Deus se revelou aos homens progressivamente explica muito satisfatoriamente todos esses “desencontros” e “dificuldades” explorados pelos céticos sem de maneira alguma reduzir a pessoa de Deus. O que para os céticos foi uma sucessão de acontecimentos históricos que moldou uma concepção sobre Deus, para a Revelação Progressiva foi uma sucessão de acontecimentos históricos em que o próprio Deus revelou de Si mesmo a nós, moldando sim o que nós sabíamos sobre Ele e não a nossa concepção sobre Ele. Mudar o que nós sabemos sobre algo é diferente de mudar o que criamos sobre algo. Quando vamos descobrindo cada vez mais informações sobre alguma coisa ou pessoa nós obviamente não estamos inventando aquela coisa ou criando aquela pessoa, nós estamos adquirindo informações sobre a coisa ou a pessoa! Para compartilhar da visão cética você tem que acreditar que os dinossauros só passaram a existir quando os humanos descobriram as primeiras ossadas. Nós não suscitamos os dinossauros a existência quando passamos a adquirir informações sobre eles e muito menos fizemos isso com Deus quando passamos a receber dEle sua própria revelação sobre Si mesmo. Muitos dos conceitos que hoje utilizamos para descrever a pessoa de Deus só vieram a existir séculos depois dos Salmos serem escritos, mas esses conceitos já figuravam naquele livro, obviamente expressos da forma com a linguagem disponível permitia. Deus auto-limitou sua grandeza para poder se fazer entender ao homem.

Perceba como o entendimento da revelação progressiva, por exemplo, explica a sandice defendida pela matéria de que El e Javé (que a partir daqui chamarei de Yahweh) eram dois deuses diferentes! Antes do evento narrado em Êxodo 3.1-15 ninguém sabia o nome de Deus! Veja o texto (Que oferece argumentos muito fortes a favor de uma revelação progressiva de Deus):

1.E apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midiã; e levou o rebanho atrás do deserto, e chegou ao monte de Deus, a Horebe. 2.E apareceu-lhe o anjo do SENHOR em uma chama de fogo do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. 3.E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e verei esta grande visão, porque a sarça não se queima. 4.E vendo o SENHOR que se virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça, e disse: Moisés, Moisés. Respondeu ele: Eis-me aqui.5.E disse: Não te chegues para cá; tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa.6.Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu olhar para Deus.7.E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. 8.Portanto desci para livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra, a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel; ao lugar do cananeu, e do heteu, e do amorreu, e do perizeu, e do heveu, e do jebuseu. 9.E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem.10.Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó para que tires o meu povo (os filhos de Israel) do Egito. 11.Então Moisés disse a Deus: Quem sou eu, que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel? 12.E disse: Certamente eu serei contigo; e isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado este povo do Egito, servireis a Deus neste monte. 13.Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? 14.E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. 15.E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração.


O texto mostra claramente que Deus revelou seu nome aos Israelitas muito tempo depois de já ter começado a se relacionar com eles. Deus comunica a Moisés que “ELE É O QUE É” e que este é de fato seu nome, ou seja, Yahweh. Mas Ele não para por aí! Veja novamente o que diz o versículo 15. Deus, agora apresentado nominalmente, faz questão de que não ocorra nenhuma confusão. É como se ele dissesse “Veja Moisés, para que fique bem claro, estou te dizendo aqui, de minha boca, que eu sou o mesmo Deus que se revelou a Abraão, o mesmo Deus que se revelou a Isaque e o mesmo Deus que se revelou a Jacó.” Abraão conhecia a Deus como Adonai e como El Elyon, mas é o próprio Yahweh que esta dizendo a Moises que Ele era e é Adonai e El Elyon. Como pode então Super Interessante, ou quem quer que seja, afirmarem que El e Yahweh eram dois deuses diferentes?! Como Yahweh irá disputar algo com El, sendo que Ele afirma ser El apenas outra forma dEle ser conhecido?! El, palavra que significa “Poderoso”, era uma palavra usada como sufixo ou prefixo pelos cananeus para designarem poder divino ou divindade de maneira genérica, ou seja, não somente uma divindade específica. Assim Abraão conhecia Deus pelo nome de El Elyon (Deus Altíssmo) ou simplesmente Adonai (“Senhor”), porém é o próprio Yahweh que nos testemunha sobre o fato de Abraão estar adorando a Ele. Assim percebemos que até do ponto de vista ceticista apresentar El e Yahweh disputando a liderança de um panteão de deuses é uma tese fraca e sem sentido. Dando uma colher de chá para os céticos seria muito mais plausível afirmar que o autor do texto de Êxodo quis englobar todos aqueles deuses em um só. Argumento que também seria invalido já que Deus nunca exigiu que o chamassem exclusivamente de Yahweh.

Outro argumento apresentado pela revista para sustentar que Yahweh era mais um entre tantos outros deuses é o Salmo 82. E aí o texto fora de contexto corre solto. Veja o Salmo:

1.Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses. 2.Até quando julgareis injustamente, e aceitareis as pessoas dos ímpios? 3.Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado.4.Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.5.Eles não conhecem, nem entendem; andam em trevas; todos os fundamentos da terra vacilam. 6.Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo. 7.Todavia morrereis como homens, e caireis como qualquer dos príncipes. 8.Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois tu possuis todas as nações.

O próprio Jesus em João 10.32-37 cita e esclarece esta passagem.

32.Respondeu-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas procedentes de meu Pai; por qual destas obras me apedrejais? 33.Os judeus responderam, dizendo-lhe: Não te apedrejamos por alguma obra boa, mas pela blasfêmia; porque, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo. 34.Respondeu-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Sois deuses? 35.Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida (e a Escritura não pode ser anulada), 36.Àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, vós dizeis: Blasfemas, porque disse: Sou Filho de Deus? 37.Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis.

Vemos que a palavra “deuses” do versículo 6 esta claramente se referindo a pessoas que possuem algum poder político-econômico e que apesar de conhecedores da palavra de Deus, como Jesus explica, nada fazem para livrar o pobre e o necessitado. Aqueles que deveriam ser diferenciados por serem portadores da palavra de Deus, filhos do Altíssimo não escapariam de morrerem como homens comuns ou qualquer outro príncipe pois, só conheciam a palavra porém, não a praticavam! Além do mais a palavra original elohin, que é traduzida para o português como deuses é usada para designar pessoas com cargos de comando em outros locais do Antigo Testamento. Ela é traduzida como ‘juízes’ em Êxodo 21:6 e 22:8, 9, 28, por exemplo.

O trecho da matéria que afirma que Yahweh era consorte de Ashera chega a ser uma afronta ao método de pesquisa histórico. Qualquer pesquisador que vá a um congresso de história apresentar uma argumentação destoante baseado em apenas duas inscrições controversas seria prontamente desacreditado. Mas quando se trata de atacar o Deus judaico-cristão qualquer uma inscrição já basta. Vale lembrar do escândalo infundado sobre o suposto túmulo dos filhos de Jesus. As duas inscrições foram encontradas entre 1975 e 76, no mesmo lugar, Kuntillet Ajrud, um local controverso no norte da península do Sinai pois, não se sabe ao certo se é um templo ou uma fortaleza. Veja as inscrições: “Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah” e “Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor ”. Dizer que Yahweh tinha Asherah por esposa e que esta crença era comum em meio a todo povo israelita baseado em duas inscrições controversas encontradas exatamente no mesmo local é academicamente desonesto. Se as inscrições fossem ao menos encontradas em locais diferentes, com certa distancia, ou fossem inscrições comuns em toda palestina, mas não, são inscrições encontradas em um sítio arqueológico que, ainda por cima, possui pinturas de diversas divindades fenícias e sírias, ou seja, claramente um local de extremo sincretismo religioso. De quebra nós ainda temos uma grande parte dos especialistas que argumentam que a palavra Asherah também era usada para designar um objeto de culto, uma estatueta qualquer. Enfim, ainda temos o problema de saber se a palavra na inscrição faz menção a deusa ou a esse objeto de culto [3].

Temos ainda por parte da matéria a afirmação de que o monoteísmo judaico só se consolidou após a morte do Rei Josias (séc. VII a.C.). Bastava aos autores da reportagem apenas uma consulta ao livro de I Reis no seu capítulo 18 [4] para entenderem que o monoteísmo se consolidara muito antes disto no episódio da vergonhosa derrota dos profetas politeístas frente a Elias no monte Carmelo (séc. IX a.C.). Ou seja, o monoteísmo foi consolidado em Israel 2 séculos antes do que afirmou a matéria de Super Interessante. O cético pode afirmar que o episodio do monte Carmelo é fantasioso, no entanto a história como disciplina, atualmente, sabe reconhecer muito bem a importância de eventos simbólicos como seria esta vitória de Elias e inclusive os trata como muito mais significativos para um povo do que eventos “naturais”. Aliás, para o mundo Antigo, eventos cujas narrativas são incorporadas com elementos fantásticos são muito mais importantes para a formação indentitária de um povo. Enfim, o monoteísmo esta consolidado entre os judeus desde o século IX a.C. crendo-se no fogo que desceu do céu para consumir as ofertas ou não. E veja caro leitor que estamos falando de consolidação e não de surgimento, por que nesse caso, o monoteísmo remonta já ao Pentateuco.

Vamos agora ao trecho em que Super Interessante dá explicações sobre de como teria surgido a concepção de divino no homem: “provavelmente vem da capacidade humana de detectar as intenções das outras pessoas. [sic] E a melhor maneira de tentar se antecipar a um adversário nos jogos mentais do dia é imaginar as intenções dele [...]"; logo, a "ideia de que há espíritos de toda sorte da natureza seria, assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção de mentes, tão hiperativo." A afirmação é ainda usada para convalidar a ideia de que "a espiritualidade faz parte de nossos instintos. É quase tão natural acreditar em divindade quanto comer ou dormir." [5] Nesse trecho nem é necessário muito comentário já que o próprio autor da matéria começa com um bom e sonoro “Provavelmente”. O que intriga mesmo é que por descuido, ou não, a mesma idéia aparece como afirmação na manchete da matéria. Aí o Compromisso é com o sensacionalismo e não com a informação. Além do mais, essa explicação naturalista e “psicologizante” para o surgimento do pensamento religioso até serviria, se as religiões fossem apenas formas de se explicar o mundo à volta do homem. Em posts anteriores já comentei aqui que as religiões que dão conta do relacionamento entre Deus e os homens e entre os homens e eles mesmos não se encaixam nessa explicação, o que acaba configurando uma generalização errônea por parte da matéria.

Vale lembrar que Super Interessante não ouviu sequer um especialista reconhecido em nenhuma das áreas que a matéria abordou [6]. Além disso, a matéria toda é baseada (pra não dizer copiada) em um único livro Deus: Uma Biografia, de Jack Miles, que alias também dá nome à matéria. Ou seja, toda a matéria não passa de a opinião de um único autor, enquanto a base do jornalismo sério é a pesquisa e a audição de diversas opiniões sobre um tema. É super interessante notar também que esse mesmo livro já foi base de uma matéria de capa da mesma revista em dezembro de 2005, ou seja, definitivamente parece-nos que a revista não esta muito interessada em apresentar uma outra visão sobre assunto. Não seria nada super surpreendente se daqui 5 anos tivermos uma nova matéria apresentando mais do mesmo...

A conclusão que chegamos é que a Biografia de Deus proposta por Super Interessante é rasa e simplista, para crentes e até mesmo para céticos. Serve apenas para atacar e desesperar os incautos, servir de “muleta” para a massa sempre aberta a uma boa desculpa para viver dissolutamente e principalmente para suprir de argumentos rasos e falaciosos a classe dos pseudo-intelectuais/neo-ateístas brasileiros. Abraços! Ps:. Por favor não publique trechos deste texto sem os devidos créditos e link do blog.

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[1] José Lopes e Alexandre Versignassi, Deus: uma biografia, Superinteressante, ed. 284, Novembro 2010, pp. 58-67.
[2] DB, p. 59.
[3] Keel, Othmar, and Uehlinger, Christoph, "Gods, goddesses, and images of God in ancient Israel" (Fortress Press, 1998) p.232-3.

[4] http://adventista.forumbrasil.net/acervo-teologico-f1/deus-mais-uma-biografia-nao-autorizada-t1317.htm
[5]DB, p. 60.
[6] http://adventista.forumbrasil.net/acervo-teologico-f1/deus-mais-uma-biografia-nao-autorizada-t1317.htm

Imagem do Post: Saint Andrew's Episcopal Church Window - The Triunph of Elijah